Em janeiro, cantam-se… as janeiras.

Tal como acontece em muitos países de tradição católica, também em Portugal existem grupos de pessoas que se reúnem para ir de porta em porta oferecendo canções de Natal a quem os quiser escutar. Tradicionalmente as janeiras cantam-se entre o ano novo e o dia de Reis (6 de janeiro) e, no Portugal rural, estavam associadas à necessidade de recolher comida para distribuir entre os mais necessitados. Nos meses de janeiro e fevereiro, não havia trabalho agrícola e muitas famílias tinham dificuldade em sobreviver durante aqueles meses. Em vez de simplesmente pedir a caridade alheia, um grupo de pessoas ia de casa em casa cantar uma ou mais canções celebrando o nascimento de Jesus ou a chegada dos Reis Magos e, no final da sua atuação, esperavam ser presenteados com alguns géneros alimentícios que seriam repartidos entre as famílias de menores recursos.

Quando deixou de ser necessário recolher alimentos, manteve-se a tradição — sobretudo nas zonas rurais do interior de Portugal. E como é habitual com as tradições populares, cada aldeia desenvolveu os seus próprios costumes. Na região de Alenquer, por exemplo, o hábito é Cantar e Pintar os Reis. O grupo de pessoas que se reúne para ir de porta em porta cantar as janeiras faz-se acompanhar de “pintores” que desenham nas paredes das casas onde são recebidos.

No Portugal moderno, as janeiras também são cantadas nas cidades de Lisboa e Porto mas nestes locais o objetivo principal é dinamizar as zonas comerciais sob o patrocínio da Câmara Municipal ou até das Associações de Comerciantes.

O grupo de pessoas que canta as janeiras pode ou não fazer-se acompanhar de músicos com instrumentos tradicionais como o cavaquinho, a pandeireta ou a concertina e o seu repertório inclui canções que celebram o nascimento do menino Jesus, a lendária viagem dos reis Magos mas também outras canções populares.

Há uma canção em particular que todos Portugueses associam a esta tradição e que se chama: “Natal dos Simples” de José Afonso. No final dos anos 60, Zeca decide explorar outras influências musicais para além do fado de Coimbra e começa a incorporar na sua produção musical elementos da cultura popular e canções tradicionais. “Natal dos Simples” é a primeira música do álbum que inicia esta transição e ilustra na perfeição esta nova fase de produção musical deste canta-autor.

O título e a letra da canção evocam a ruralidade, a pobreza excessiva que frequentemente lhe estava associada e a dor sentida por quem está longe. Essas imagens refletem a vida de muitos portugueses “simples” (pobres), obrigados a deixar a sua terra (origens rurais) para procurar trabalho noutros lugares e a saudade que sentem, sobretudo em épocas como a do Natal na qual a família se volta a reunir. Entre 1955 e 1974 saem do país mais de 1,6 milhões de pessoas, e muitos dos que não saem, são obrigados a migrar internamente em busca de trabalho nas grandes cidades ou zonas industriais.

A canção de José Afonso marca um passo importante do percurso musical do artista aliando a música folclórica tradicional à reflexão social mas também apresenta a tradição cultural das janeiras a uma geração que quase se tinha esquecido dela.