carmen miranda 2Santos da casa não fazem milagres” — diz a sabedoria popular —  quando o reconhecimento do valor de alguém acontece primeiro no estrangeiro e demora ou nunca chega a acontecer no país natal do artista em causa. Este é certamente o caso de Carmen Miranda — a Josephine Baker luso-brasileira que, durante a sua vida artística não obteve o reconhecimento dos seus conterrâneos. É curioso como os percursos artísticos destas duas mulheres têm em comum a extravagância e a falta de reconhecimento do país que as viu crescer. Josephine Baker tornou-se um dos maiores ícones da arte vanguardista europeia e do jazz dos anos 20 graças aos franceses, enquanto nos Estados Unidos teve de lutar contra o racismo e nunca foi vista como uma artista “séria” e Carmen Miranda foi acusada de “americanizar” o samba e representar em Hollywood uma versão deturpada de toda a cultura latina.

Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em Portugal, mais precisamente na aldeia de Várzea da Ovelha e Aliviada, freguesia de Marco de Canaveses, localizada a 66 quilómetros da cidade do Porto, mas apenas porque a sua mãe quis dar à luz à sua segunda filha ainda em Portugal. Em 1909, no ano do nascimento de Maria do Carmo, o pai já estava instalado no Rio de Janeiro onde tinha aberto uma barbearia e o resto da família chegou em 1910 quando Maria do Carmo tinha menos de um ano de idade. Apesar de nunca mais ter pisado o solo português, Maria do Carmo nunca adotou a nacionalidade brasileira e perante a indiferença brasileira ao seu sucesso internacional, exila-se em Los Angeles onde morre aos 46 anos. 

Maria do Carmo começou a trabalhar com 14 anos para ajudar a economia familiar e conseguiu montar uma loja de chapéus, mas o seu sonho era ser cantora e, aproveitando o despontar de um novo género musical que surgiu no Rio de Janeiro e Bahia na transição do século XIX para o XX, começou a cantar em pequenas festas de bairro até conseguir gravar o seu primeiro samba em 1929. Uma década depois, recebeu um convite para atuar na Broadway e passado um ano participou no seu primeiro filme americano.

Na altura, o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, acreditava que Miranda poderia promover a cultura brasileira no estrangeiro e indiretamente as exportações do país, assim que ajudou a financiar a ida de Miranda e da sua banda, Bando da Lua, para os EUA. Ao mesmo tempo, o presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt defendia uma “Política de Boa Vizinhança” que pretendia estabelecer boas relações com os estados da América Latina, não interferindo nas suas políticas internas ao mesmo tempo que estabelecia acordos de comércio e foi neste contexto internacional que Miranda começou a construir a sua carreira primeiro na Broadway e simultaneamente em Hollywood.

Após o sucesso do seu primeiro espetáculo na Broadway e o seu primeiro filme de Hollywood, Miranda regressa ao Brasil para dar continuidade à sua carreira no país mas foi duramente criticada por “comercializar” a música brasileira e alimentar um estereótipo de cultura latina imaginada pelos americanos que nada tinha que ver com a cultura brasileira. Ela responde aos seus críticos com a canção: “Dizem que eu voltei americanizada” (1940) e regressa aos EUA onde irá contracenar em vários musicais que ajudam os americanos a esquecer a Grande Depressão e a escapar à Segunda Guerra Mundial.

Tal como Baker ficou conhecida pelo seu reduzido guarda-roupa que incluia uma saia feita de bananas, também Miranda se tornou famosa pelo seu vestido de baiana e icónicas plataformas e turbante tutti-frutti, transformando-se numa das atoras estrangeiras mais icónicas dos anos dourados dos grandes musicais de Hollywood. É desta altura a criação do personagem de Zé Carioca e da curta-metragem de animação “Aquarela do Brasil,” que é também o último segmento do filme “Saludos Amigos” produzido por Walt Disney em 1942 e que leva o Pato Donaldo a viajar por vários lugares da América Latina. Na sequência final do filme (e da curta), o Pato Donaldo dança com Carmen Miranda, numa clara homenagem ao Brasil, ao Rio de Janeiro e à famosa estrela de Hollywood.

Miranda, que em 1944 é a estrela mais bem paga de Hollywood, dedica-se de corpo e alma à sua carreira até à sua morte de ataque cardíaco em 1955. Nesses últimos anos da sua vida, viveu sempre em Los Angeles. Porque será que a sua terra de adoção nunca reconheceu a arte da “brazilian bombshell” como os americanos a apelidaram?

Da mesma maneira que os EUA nunca reconheceram o valor artístico de Baker, o Brasil só percebeu a importância de Miranda na divulgação do samba e da cultura brasileira não apenas nos EUA mas, através da sua indústria cinematográfica, no mundo muito depois da sua morte. Ambas viveram num mundo em que apesar da fama, o reconhecimento que verdadeiramente desejavam e mereciam ter nunca chegou. 

Escrita a pensar em Carmen Miranda, a canção “Dreamworld: Marco de Canaveses” de David Byrne e Caetano Veloso do álbum “Red Hot & Lisboa: Onda Sonora” (1999) descreve a melancolia do desejo por um reconhecimento que nunca se materializa, a tristeza de alguém cuja arte conquista toda a gente exceto os seus próprios conterrâneos.