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Se pensa que este artigo é sobre cães (frequentemente referidos como os melhores amigos dos seres humanos) pode abandonar já a leitura pois o fiel amigo de que vou falar é o bacalhau.
Pois é, o “fiel amigo” dos portugueses é um peixe que nem sequer existe nas nossas águas territoriais e tem de ser pescado bastante mais acima entre as costas da Escócia, Islândia e Noruega. A pesca ao bacalhau era feita por longos períodos de tempo e considerando que não existiam barcos com câmaras frigoríficas, o método de conservação escolhido foi aquele que já era usado pelas famílias portuguesas para conservar a carne de porco: o sal.
Há quem diga que existem mais de 1000 receitas para cozinhar este peixe salgado (depois de demolhado para lhe remover pelo menos parte do sal) mas pessoalmente prefiro dizer que existem 365 receitas: uma para cada dia do ano porque soa mais bonito.
No Natal, o bacalhau está presente na mesa de um grande número de portugueses — católicos ou não — e curiosamente a receita que usamos nesse dia é a mais simples de todas: bacalhau cozido com todos. Estou a falar do prato que é servido na consoada ou melhor dizendo no jantar da véspera de Natal, 24 de dezembro. Fácil e simples. Cozido com todos. Este “todos” quer dizer com os vegetais que todos os portugueses, de norte a sul do país, têm nas suas hortas: batatas, couves galegas e cenouras. E porque muitos também têm galinhas: um ovo, também cozido. As famílias mais endinheiradas ou as mais numerosas acrescentam também uma mão cheia de grão de bico por pessoa. Et voilá está feito o prato principal da consoada, respeitando a tradição católica de não comer carne no dia do nascimento de Jesus. Serve-se regado com muito azeite e vinagre para, no final, se as regras sociais o permitirem, poder molhar o pão no azeite que ficou no prato.
Na verdade, comer peixe no jantar de Natal é bastante conveniente porque nos espera um rol de sobremesas a começar pelo arroz doce ou a aletria que acompanham qualquer festa ou celebração que inclua um português e os doces que apenas se comem nesta altura do ano: o Bolo Rei, os sonhos, as filhoses, as azevias e as rabanadas ou fatias douradas.* Enquanto o bolo que se parece com uma coroa e que pretende recriar as prendas (ouro, mirra e incenso) oferecidas ao menino Jesus pelos Reis Magos, chegou a Portugal em 1875 graças a um pasteleiro francês contratado para trabalhar numa prestigiada pastelaria lisboeta, a Confeitaria Nacional, os outros doces tradicionais do Natal Português são feitos com os ingredientes mais básicos (e pobres): farinha, manteiga e ovos. Depois de fritos em óleo, todos eles são generosamente polvilhados com açúcar e canela. O resultado é de tal forma reconfortante e revigorante que as rabanadas eram tradicionalmente oferecidas às mulheres que tinham acabado de dar à luz e por isso são também conhecidas como fatias-paridas.**
Atualmente, o poder aquisitivo das famílias portuguesas permite-lhes acrescentar muitas mais iguarias à sua mesa de Natal mas não deixa de ser importante recordar como tradicionalmente esta era uma celebração bastante humilde, preparada com os ingredientes que mesmo as famílias mais pobres tinham à mão. Outra prova disso é a roupa-velha.
Sempre que havia sobras do bacalhau com todos da noite anterior, esses restos eram servidos ao almoço do dia seguinte cortados em pedacinhos pequenos para ser mais fácil aquecer ao lume num refogado. O curioso nome deste prato: “roupa velha” vem da sua parecença com um monte de farrapos.
Dizemos que o bacalhau é o “fiel amigo” dos portugueses porque é o ingrediente nacional comum a todos os portugueses independentemente de morarem perto ou longe da costa e mesmo quando o preço do bacalhau faz diminuir a sua presença à mesa, continua a ser uma tradição natalícia comer bacalhau com todos e, para que não se desperdice nem uma única lasca deste precioso petisco: roupa velha.
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*Este doce é também popular na Espanha (torrijas), na França (pain perdu), na Itália (pane fritto), no Reino Unido e nos Estados Unidos (french toast ou eggy bread).
**Se quer saber mais sobre a lenda das rabanadas recomendo-lhe esta rúbrica da Antena 1, Histórias Assim Mesmo de Mafalda Lopes da Costa disponível em RTP Ensina [último acesso a 18 de dezembro de 2024]