A língua é uma construção coletiva que reflete a história e os processos de constituição dos grupos sociais que a usam e não nos deve surpreender que a mesma palavra possa ter usos opostos em variedades diferentes. 

No Brasil, o pronome “você” faz parte da norma padrão em quase todos os estados e passou inclusivamente a substituir o “tu” na maior parte de contextos informais. Naquela variedade do Português, esta palavra é uma das mais frequentes da língua, já que é a usada em contextos quer formais quer informais (como o “you” inglês). Tendo-se transformado na forma padrão de tratamento entre familiares e amigos, colegas de trabalho e até em interações com desconhecidos, a palavra é amplamente utilizada no quotidiano linguístico dos brasileiros ao ponto do pronome “tu” ter caído em desuso em quase todo o país à exceção de alguns estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Maranhão e Pará.

Em Portugal, ao contrário do que aconteceu no Brasil, continuamos a usar distintamente as formas de tratamento “tu” e “você” mas reservamos a primeira para relações extremamente íntimas e a segunda para todas as outras situações sejam elas formais ou informais.

No Espanhol, há várias décadas que o “você” está a cair em desuso sendo substituído pelo “tu” em quase todas as situações em que o “usted” era utilizado. Esta mudança reflete uma “desformalização” da sociedade que passou a preferir (e utilizar) modos de tratamento menos deferenciais. Em Portugal, houve apenas um curto período no pós 25 de Abril em que os portugueses aboliram os títulos e passaram a “tutearse” como dizem os espanhóis. Depois veio o cavaquismo e um aumento significativo de estudantes que completaram estudos superiores. Passámos todos a ser Doutores da Mula Russa a exigir que nos tratássem por Senora/a Dr. (Doutor/a), Eng. (Engenheiro/a), Arq. (Arquitecto/a) e abraçamos a forma de tratamento formal (você) em detrimento da informal (tu).

Os aprendentes de Português Língua Estrangeira ficam a saber no primeiro dia de aula que os portugueses são pessoas excessivamente formais que reservam o pronome “tu” para um número muito pequeno de relacionamentos muito especiais e que a forma mais comum de tratamento é a terceira pessoa do singular. Assim, as perguntas:

— Vem ao cinema connosco?
— A Maria quer vir connosco ao cinema?
— O tio quer um café?
— O Sr. Engenheiro está disponível para se reunir comigo amanhã?

não estão a fazer referência a uma terceira pessoa externa à conversa mas a dirigir-se direta e formalmente ao interlocutor.

É óbvio que nenhum português criticará um estrangeiro por usar “tu” como forma de tratamento mas, em níveis mais avançados de língua, é importante conhecer (e respeitar) as regras de tratamento dos nativos. 

Em Portugal, atualmente, o uso de “tu” depende da família e da sua cor política. Pessoas do centro-esquerda têm mais tendência para — entre familiares e amigos íntimos — usar o “tu” enquanto as pessoas mais elitistas usam quase exclusivamente a terceira pessoa do singular, até mesmo nas suas relações familiares mais cordiais. O resto da população, independentemente das crenças políticas ou origem social, termina por recorrer ao pronome mais formal (ou aos recursos linguísticos usados em seu lugar).

Quando alguém decide que quer substituir o “você” pelo “tu” então temos de dar ou pedir autorização.

Em relações de amizade, uma das partes “abre” a questão fazendo a pergunta que dá título a este texto: “Podemos tratarmo-nos por tu?” mas apenas o faz quando suspeita que a outra pessoa responderá afirmativamente. 

Em relações desiguais em termos de estatuto, a pessoa com uma posição social mais elevada iniciará o procedimento de “autorizar” um tratamento menos formal, dizendo algo como: “Pode tratar-me por tu.” ou “Podemos usar o ‘tu’?”. Nestes casos, a outra pessoa poderá ou não aceder ao pedido, pois existe ainda uma nuance associada com esta palavra: a do distanciamento. Quando o nosso chefe nos pede que usemos o “tu” mas nós preferimos manter uma distância formal, então continuamos a usar o “você” num misto de deferência e alheamento. De certo modo, disfarçamos com uma capa de respeito ou consideração o facto de não querermos ser seu amigo íntimo pois o “tu” está reservado para esse tipo de relação.

A complexidade do uso de “tu” e “você” reflete diferenças linguísticas mas sobretudo nuances culturais e sociais. Compreender essas sutilezas é fundamental para uma comunicação eficaz e culturalmente apropriada.