Morreu a última das Três Marias. Co-autora do livro “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Teresa Horta faleceu em Lisboa no dia 4 de fevereiro de 2025, aos 87 anos. Jornalista de profissão, Horta publicou também poesia e romance mas estará para sempre associada àquela que foi a primeira causa feminista internacional — como descreve Ana Luísa Amaral, na nota introdutória da edição de 2010 das “Novas Cartas Portuguesas”.

As outras Marias são Maria Velho da Costa (1938-2020) e Maria Isabel Barreno (1939-2016). 

Maria Velho da Costa publica em 1969 aquele que é considerado como um dos romances portugueses mais inovadores da segunda metade do século XX devido ao seu experimentalismo linguístico. Entitulado “Maina Mendes”, esta obra desafia os papéis sociais e sexuais esperados das mulheres na época e abre caminho para a literatura feminista.

Maria Isabel Barreno lança o seu primeiro romance “De Noite as Árvores São Negras” em 1968 e desde esse primeiro momento desafia as normas sociais e políticas de sua época e usa a literatura como instrumento de denúncia. “O falso neutro” é um ensaio sobre a discriminação das mulheres no ensino publicado em 1985. O ensaio analisa a representação de homens e mulheres em livros didáticos e currículos e conclui que o sistema educacional contribui para a perpetuação de desigualdades de género na sociedade e demonstra que o uso do masculino como forma genérica não é “neutra” mas antes uma forma de tornar o feminino invisível. 

Em 1974, Barreno e Horta fundam o Movimento de Libertação das Mulheres que, apesar de ter durado apenas 4 anos, contribuiu significativamente para a consciencialização feminista em Portugal e lançou as bases para futuras conquistas feministas nas áreas da sexualidade, maternidade e aborto; violência doméstica; discriminação laboral e igualdade salarial.

Em 1971, estas três mulheres decidem escrever um livro juntas e reúnem-se regularmente para partilhar os textos que escrevem. Durante 9 meses, entre maio de 1971 e janeiro de 1972, as três Marias escrevem 120 textos, incluindo cartas, poemas, prosa, ensaios e relatórios. Em abril de 1972, a editora Estúdios Cor, cuja direção literária estava a cargo da poetisa Natália Correia, lança no mercado “Novas Cartas Portuguesas” cujo título é uma referência às “Cartas Portuguesas” —  um conjunto de cinco cartas supostamente escritas por uma freira portuguesa chamada Mariana Alcoforado.

“Lettres Portugaises” Lettres portugaises

Publicadas em Paris em 1669, estas cartas alegadamente traduzidas para o francês, descrevem a paixão não correspondida de uma freira residente num convento de Beja pelo oficial francês, conde Noël Bouton de Chamilly. Estas missivas, que podem ser lidas como um exercício de autoanálise, onde a “autora” oscila entre acusação e submissão, revolta e resignação, tiveram um enorme sucesso editorial na altura da sua publicação devido ao mistério, ao exotismo e à intensidade emocional da sua “autora”. A obra tornou-se um modelo para o género epistolar amoroso e é considerada um exemplo importante da expressão do amor feminino na literatura. A autoria destas cartas nunca foi revelada mas há quem as atribua ao escritor e diplomata francês Gabriel de Guilleragues (1628-1685).

Da mesma maneira que nunca saberemos quem escreveu as “Cartas Portuguesas”, também nunca saberemos a quem pertence cada um dos textos das “Novas Cartas Portuguesas” pois as Três Marias fizeram um pacto de nunca revelar a autoria de cada um dos textos e, em nenhum momento, romperam esse acordo.

“Novas Cartas Portuguesas”

Três dias depois de estar à venda, as “Novas Cartas Portuguesas” são apreendidas pela Polícia Judiciária devido ao seu “conteúdo pornográfico” e as suas autoras são detidas, interrogadas e acusadas de atentarem contra a “moral pública”. 

O julgamento das Três Marias começa a 25 de outubro de 1973 mas é sucessivamente adiado e acaba por ser anulado logo depois do 25 de abril de 1974. Uma das razões para o atraso deste julgamento terá sido o impacto mediático que teve não apenas em Portugal mas internacionalmente, já que vários nomes conhecidos da literatura mundial, algumas delas ligadas ao feminismo como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, e Iris Murdoch lideraram uma campanha de solidariedade a favor das Três Maria transformando a sua causa na primeira luta feminista internacional.

Com a morte de Maria Teresa Horta, encerra-se um capítulo fundamental na história do feminismo e da literatura portuguesa. O livro que desafiou a censura e sacudiu consciências nos últimos anos do regime fascita português, continuou, depois da Revolução dos Cravos,  a ser um marco na literatura feminista e na luta pela liberdade de expressão. A coragem e a integridade destas três mulheres são um testemunho da resistência e da força da escrita como ato político. Na despedida de Maria Teresa Horta, homenageamos Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Desapareceram as Três Marias mas o legado das Novas Cartas Portuguesas permanecerá.