O uso da terceira pessoa do singular como forma de tratamento é uma característica marcante da língua portuguesa, mas, em Portugal, a palavra “você” carrega uma bagagem sociocultural complexa.

Tirando um curto período entre o 25 de Abril e a consolidação do Cavaquismo em que os portugueses decidiram adotar a segunda pessoa do singular (tu) como forma de tratamento na grande maioria das suas interações sociais, os falantes de Português Europeu continuam a usar a terceira pessoa do singular mas sem nunca pronunciar a palavra “você” porque este pronome é considerado como uma mixórdia linguística como descrevemos no blogue anterior.

O uso do pronome é também visto como uma forma de rebaixar a pessoa a quem nos estamos a dirigir. Esta interpretação da palavra “você” está diretamente associada a uma caricatura de um grupo social que mora na margem norte de Lisboa, mais particularmente na região de Cascais, conhecido como as Tias.

Tradicionalmente, as famílias portuguesas recorriam a formas de tratamento mais formais, sobretudo para marcar o respeito pelos membros mais velhos. Fórmulas como “o pai / a mãe”, “o avô / a avó”, “o tio/a tia” eram usadas pelos membros mais novos da família para se dirigirem aos mais velhos que podiam ou não retribuir da mesma forma. Um exemplo de uma interação entre pai e filho, poderia ser:

— O pai pode passar-me a água, se faz favor. — pede o João, que acaba de fazer 8 anos, ao seu pai.
— Queres que te sirva? — responde o pai.

O membro mais velho da família também pode optar por responder na mesma moeda ou melhor dizendo usando a mesma pessoa verbal:

— O Afonso quer que eu o sirva? — responde o pai ao filho de 8 anos.

Resposta essa que pode parecer excessivamente formal a um observador externo. 

O papel de um comediante é observar a realidade para expor contradições, hipocrisias e comportamentos sociais absurdos que habitualmente passam despercebidos à maioria da população e foi precisamente isso que fez Herman José e a equipa de guionistas quando, no final dos anos 90, desenvolveu as personagens que ficaram conhecidas como as “Tias” e que teriam tido como inspiração Lili Caneças e Cinha Jardim — duas socialites famosas da época que pertenciam a um grupo de pessoas abastadas que viviam na linha de Cascais e que eram extremamente formais e exibiam formas pretensiosas de agir e afetadas ou amaneiradas de falar.

A série “Herman Enciclopédia” foi uma das produções mais criativas e bem sucedidas do canal 1 da televisão estatal (RTP 1). Em todos os episódios (exibidos semanalmente entre 1997 e 1998 ) havia um sketch que ridicularizava a maneira de se comportar e falar das Tias de Cascais. Um dos maneirismos das personagens era usar a palavra “você” para marcar a distância entre as Tias e os demais. O pronome “você” resultante do processo de aglutinação de “vossa mercê” passou a estar associado a uma forma de menosprezar ou denegrir o outro e a conotação negativa que lhe estava associada aumentou.

Os preconceitos e valores arraigados das Tias, ainda que absurdos e ridicularizados por Herman José, contribuíram para aumentar a aversão dos portugueses à palavra “você” que foi quase totalmente eliminada dos socioletos de vários grupos sociais (de classe média e alta) e etários (pessoas com mais de 45 anos). 

Resumindo, os falantes de Português dos dois lados do Atlântico usam a terceira pessoa do singular como forma de tratamento mais frequente. A única coisa que os distingue é a aversão de alguns portugueses à palavra “você” fruto de uma conjuntura mais conservadora e tradicionalista que caracterizou a transição do século XX ao XXI.

A linguagem reflete as constantes mutações da sociedade que a utiliza e assim que as gerações mais novas descartarem as atuais conotações negativas de “você”, a palavra re-entrará no léxico de uso comum e tornar-se-á a forma de tratamento preferida para o trato quer formal quer informal, forçando o desaparecimento do tu, como já acontece no Brasil.